20/04/2009

Miopia

Às vezes a gente perde coisas importantes de propósito.
Na verdade, nem sempre o propósito existe concretamente, mas existe a vontade de perder, sem pensar nas conseqüências da perda ou se os motivos que nos fazem perder coisas importantes são maiores do que as coisas importantes em si.

Na quarta série minha mãe me levou ao oftalmologista; descobrimos que eu tinha de usar óculos. Nada grave, uma miopiazinha leve, meio grau em cada olho e tudo resolvido. Usar por um ano, voltar ao oftalmologista e ver se a coisa ficava por aí ou aumentava o grau.
Fomos comprar os malditos óculos. Eu queria um óculos igual ao do meu pai: daqueles antigões, grandes, retos em cima e redondo em baixo, aro fino e parecendo oncinha, meio amarelo meio marrom as duas cores mescladas. Não, não, nada disso: me deram uns óculos modernos, pequenos, totalmente redondos, grossos, roxo e branco transparente. Era daqueles óculos de crianças coitadinhas mas bonitinhas. Pelo menos era assim que eu achava. Ninguém perguntou se eu queria que os óculos fossem daquele jeito, assim como nunca ninguém pergunta pra gente se a gente aceita a merda toda ou só a parte boa. Mas enfim, voltei com o estojinho dos óculos para casa, segurando nas mãos e não nas orelhas.
Eu era obrigada a ir pra escola com aquilo, que era além de ridículo, muito pesado e apertado. Eu ficava com dor de cabeça porque os óculos me apertavam as têmporas e marcavam o meu nariz. Cheguei a reclamar para o meu pai (e com ele porque ele usava óculos e me entenderia; minha mãe não usava óculos e era mandona): "Tá doendo aqui, ó... porque é muito apertado e pesado. Eu também não consigo enxergar direito com eles... tenho que ficar olhando por cima dos óculos o tempo todo". Eu não estava acostumada a enxergar tão bem, com tanta nitidez e aquilo me incomodava. Meu pai disse que eu ia acostumar e ponto. Claro que nem só a dor de cabeça, a feiúra do óculos e o incômodo de enxergar como eu nunca tinha enxergadoantes eram suficientes para eu não querer usar óculos. O paquerinha não iria achar bonito aquelas duas bolotas transparentes, roxas e brancas dependuradas na minha cara. Além disso, nenhuma outra menina da sala usava óculos e eu já era motivo de piada por ser "japonesa".
Tentei explicar para o meu pai o que se passava. Ele terminou com "você vai se acostumar" e ponto. Pois então ponto. Eu não ia me acostumar coisa nenhuma e eu não queria quebrar, porque se eu quebrasse iam consertar e me fazer andar com aquelas cordinhas horríveis que não deixam os óculos caírem porque ficam presos ao pescoço. "Então vou perder"; e perdi na escola, debaixo de uma outra carteira que não era a que eu sentava. O coração espancava lá dentro e pulava pela boca, os dedos ficaram gelados de susto porque eu sabia que estava fazendo merda.
Fiquei assim tremeliquenta por uns 3 dias. No quarto dia eu disse pra minha mãe que perdi os óculos, mas que ia procurar nos "achados & perdidos" da escola, sem falta. E curiosamente eu sempre esquecia de ir lá....... Não sei se a rinite/asma/bronquite/alergia do meu irmão me salvaram, mas minha mãe esqueceu totalmente daqueles malditos óculos. A bola da vez era meu irmão e a missão impossível era se livrar dos bichinhos de pelúcia, das roupinhas de lã e do carpete de casa. A doideira ali era tamanha que ninguém se deu conta que eu nunca usei óculos. Ainda bem.

Eu perdi de propósito os óculos. Meus propósitos não eram melhores do que sarar da miopia, mas mesmo assim, eu achei mais fácil perder o chato importante do que ganhar o saudável a longo prazo.
Mas é assim mesmo: às vezes a gente quer se livrar das coisas difíceis, mesmo sabendo que elas são importantes. Às vezes a gente não quer saber do que é importante, a gente só quer saber da gente.

Eu nunca mais achei meus óculos e nunca mais vou achar. Eles me rejeitaram e me deixaram com uma baita miopia. Mas entender meus propósitos de perda já me faz menos míope. Agora só faltam os óculos para as outras miopias.

17/04/2009

Limite

O que fazer com aqueles dias que subtraímos do total da vida 24 horas de possível felicidade?
Claro que nunca ninguém disse que seria fácil e, ainda bem: o ser humano ainda não é tão mentiroso assim. Mas também ninguém disse que o suposto impossível seria alcançado várias vezes e os limites se tornariam cada vez mais largos, ao ponto de você se perder e nunca mais conseguir achar as beiradas do limite, que expande, expande, expande ao ponto de você não saber mais até onde deve continuar ou parar.
Limite é a questão.
Como você sabe onde começa o seu limite? Eu gostaria de ter um painel no meio da testa, onde uma luzinha começaria a piscar quando o meu limite tivesse sido alcançado, como acontece com o carro quando a gasolina está acabando. Eu gostaria de ter neste painel, como no painel do carro, outras luzinhas: uma que indicasse quando estou terminantemente triste para que alguém viesse com apenas 3 dedos da mão menos inteligente (normalmente a esquerda) e fizesse um cafuné, que durasse nem que fosse 20 segundos tranqüilos; outra que piscasse para indicar quando estou doente e quando esta luzinha piscasse alguém chegaria perto de mim e perguntaria se eu quero uma pastilha pra garganta; e outra para indicar "quer e precisa de silêncio e privacidade sem culpa".

É por isso que as coisas para mim não dão muito certo: eu quero coisas difíceis.

08/04/2009

Batian

Quando eu era pequena e estudava na Pipoca & Sapeca, eu ganhava arroz doce cor-de-rosa da minha batiam. Era assim: eu saía da escola e do lado tinha uma doceriazinha, minha batiam me dava um saquinho comprido de uns 25cm, cheio daquele arroz doce sequinho, tipo japonês, bem cor-de-rosa, eu balançava a cabeça com vergonha "não precisa não, batian...", morrendo de medo da minha mãe brigar comigo quando eu chegasse em casa pois as pontas dos meus dedos cor-de-rosa, mistura de corante e baba, iam fatidicamente me entregar. Corante para mim era um veneno, eu era alérgica. Hoje passou. E era sempre assim. Eu sempre ganhava aquele doce proibido da batian, quando era ela e não a minha mãe que ia me buscar na escola.

Com ela eu aprendi a gostar de uva tipo Itália, aquela verde e azeda que estala na boca quando morde e tem sementes enormes, que nenhuma criança gosta. Mas a gente ia na feira de domingo, comprava uns 30 pastéis para toda a tchurma, caldo de cana e, para mim e só para mim, um cachinho de uva Itália. Dos netos da Fuyuka eu sempre fui a mais bobona e certinha; minha mãe era brava: não podia sujar a roupa, correr pela casa da batian, sentar no sofá caso tivesse gente mais velha de pé, nem pedir doces ou brinquedos. Os meus primos eram mais malacos e também mais velhos e por isso quando alguém gritava em forma de convite: "quem quer ir pra feira com a Batian?", meus primos saíam meio de ladinho, quietinhos porque não queriam ir pra feira, ser esmagado por um monte de gente e carrinhos, ouvir grito de feirante, nem carregar peso na volta. E como eu era bobona e de-ses-pe-ra-da para sair de casa, eu sempre gritava "eu quero! eu quero! eu vou com a batian!", e saía com ela, pulando feito um cachorrinho alegre. A gente subia a ladeira da casa dela conversando: "Batian não estudou, é burra... turabalhou na roça, vida dura... você estudá bastante, fazê liçon, obedecê mamãe, estudá bastante, lê lívoro e ficá fórute". Eu continuava subindo a rua, puxando a batian pela mão, querendo ir mais rápido porque eu mal via a hora de chegar na pastelaria e pedir eu mesma, com jeito de adulta esperta, todos os sabores variados para os 30 pastéis! Mas eu ouvia o que ela dizia. Eu ouvi tudo com sinceridade e peito aberto, sem achar aquilo chato ou bravo, eu olhava para aqueles olhinhos já azulados do tempo e via que aquilo era importante, coisa para ouvir, sentir, entender; eu gravei todas as rugas daquele rosto e sentia na palma da minha mão todos os calos daquela mão que me levava. Eu entendi. Sem raiva, sem feminismo, sem medo, sem pressão, sem recompensa. Estudar era a melhor coisa para se fazer! Sabe, ouvir isso da minha avó era bem diferente de ouvir da minha mãe, porque a batian não queria se realizar em mim e não tinha medo de fracassar como mãe: ela só queria que eu não sofresse como ela.
Minha avó também ia lavar roupa nos fundos da casa. Ela ia bem quietinha, esfregava a roupa com calma, devagar, a torneira soltava pouca água. Ela cantava coisas em japonês que até hoje eu não sei o que queriam dizer, mas do que me lembro, era triste. Enquanto isso eu ficava catando as formigas no chão, fugindo das minhocas da terra, quebrando os espinhos da babosa do ditian e me perguntava porque batian não joga a casca do ovo no lixo, ao invés de jogar na planta?, porque ela prende o Sheik no banheirinho mesmo sabendo que ele bebe água da privada? E boa parte da tarde passava assim... sem conversa, sem aquelas toneladas de perguntas chatas que eu fazia quando era criança, sem brinquedo e em paz.
Uma vez, eu já era mais velha, minha batian veio na casa da minha mãe e como ela sempre fazia, trouxe um monte de coisas de comer, dentre elas aquele doce de feijão que até hoje eu adoro. Ela sempre fazia isso quando visitava a gente. Naquele dia ela usava aquele vestido azul/verde eterno com um alfinete amarelo espetado e eu fiz com que ela se sentasse na sala de jantar e me ouvisse tocar piano. Eu tentei tocar para ela a música que ela cantava enquanto lavava roupa. Mas ela não lembrou, não percebeu que era a mesma música porque eu tinha feito um arranjo todo complicado para impressioná-la. Deu que ela não entendeu nada: nem que era complicado e difícil para a criança tocar, nem que a criança inventou o arranjo sozinha, nem que era a música que ela cantava quando lavava roupa, nem que era uma homenagem para ela. Naquele dia, eu fui levá-la de volta para a casa dela. Fomos andando pelo caminho mais curto, por minha idéia. O caminho era mais curto porque não era preciso contornar o riozinho sujo; era só passar pela ponte sobre ele, improvisada pelas crianças da rua. A ponte era muito emocionante: as tábuas eram finas, irregulares pregadas muito toscamente, balançavam e estalavam quando a gente pisava, e no final não tinha rampa para voltar ao solo e era preciso dar um pulo para sair da ponte e chegar no chão. Depois da ponte ainda tinha uma bruta ladeira , na terra, subindo por degrauzinhos forjados pelos tênis das crianças que gostavam de brincar de subir o morro. A ladeira sim era um perigo! Se você não subisse correndo e não pegasse o "embalo", então você precisaria ir se agarrando nos raminhos do chão para não escorregar e cair. Eu achava aquele caminho o máximo! Muito mais legal do que o outro! E passamos nós duas pela ponte, primeiro ela, depois eu. Ela andava devagarinho e ia dizendo "gatchan-gatchan, gatchan-gatchan" porque a ponte balançava. No final da ponte, eu pulei primeiro no chão e dei a mão para ela segurar-se em mim e pular também. Agora o desafio era subir a montanha! Eu subi correndo para ela ver como é que se fazia e como eu era boa naquilo. Quando eu cheguei no topo da montanha, percebi que ela ainda estava lá embaixo e não tinha vindo correndo também. Eu desci correndo para ver o que tinha acontecido e percebi que ela tentava subir se agarrando nos raminhos do chão. De repente fiquei triste por ela e me senti mal instantaneamente por tê-la feito vir pelo caminho mais legal para mim, mas pior para ela. Acho que foi só nesse dia que eu percebi que o corpo das pessoas vai ficando menos forte e menos rápido conforme o tempo vai passando. Foi muito triste ver a cara de susto e força que ela fazia. Eu decidi que eu ia empurrar a bunda dela enquanto ela subia, assim seria mais fácil e ela não tombaria para trás. Para mim foi um sufoco porque ela tinha um bundão bem pesado e ela era toda bem pesada. Mas a gente conseguiu chegar! No final do morro ela ficou uns bons minutos parada, respirando ofegante, mas depois riu. Ela riu muito e aquela barrigona toda balançava com todo o corpo e todo o rosto sorria. Eu me senti tão aliviada!

Faz cinco dias que a minha batian chegou no topo da montanha mais alta do mundo.
Foi o caminho mais doloroso que eu já presenciei. Ela chegou, guerreando silenciosamente contra o tempo e contra os mais diversos tipos de dor.
Mas o final da montanha chegou.

Obrigada por tudo, cor-de-rosa ou invisível.
Eu vou sempre lembrar de você, batian.

A gente se vê quando a minha montanha acabar.