04/01/2010

Ponto-cruz

Minha avó paterna me ensinou poucas coisas. Dentre as coisas que ela tentou me ensinar estão pedir a bênção para os mais velhos, ser comportada e não desgrenhar o vestidinho, não tirar os sapatos na casa dos outros, ser obediente. Ela também tentou me tornar católica, me levar para o catecismo para poder estar preparada para - moça direita – casar na igreja, ser abençoada por Deus e pela Família. Não sei se por questão circunstancial, por ser naturalmente contestadora, por não acreditar em deus ou por duvidar que uma pessoa tão infeliz no casamento e com sua família, que engoliu sapos, bebedeira e tapas, que prostitui a liberdade em prol de um equilíbrio familiar-religioso pudesse me dar bons conselhos quanto às minhas escolhas amorosas e morais. A questão é tirar o leite de pedra - novamente não importando se o leite é amargo ou doce, nutritivo ou venenoso. Ou ainda: construir um castelo com as pedras que me atiraram, fazer da queda uma lição, etc etc etc.. (seria bom se frasezinhas assim realmente pudessem ser sanativos e band-aids eficientes).
Eu mencionei as coisas que minha avó tentou me ensinar e não conseguiu. Mas hoje, inconformada e magoada com injustiças consecutivas, lembrando que casada sob bênção de Deus – como deseja minha avó - ou sob a maldição e o desejo do ser humano, a união de duas pessoas é coisa linda e espinhosa, como um cacto . Rememorando a vontade dela de que eu fosse boa moça, lembrei também das coisas que eu de fato aprendi com ela: duas ou três receitas de bolos e doces infalíveis, o ponto básico do crochê, me limpar da frente para trás e só. Das coisas que intencionalmente ela me ensinou e que eu realmente aprendi, acho que foi isso, basicamente. Ocorreu-me que de mais importante que eu tenha aprendido com ela foi aquilo que ela não teve a intenção de me ensinar. Foi sobre o bordado em ponto-cruz. Na verdade eu sempre achei enfadonho fazer ponto-cruz porque era sempre sobre uma base já pronta, furada e previamente colorida onde a pessoa só precisava colocar a linha da cor certa, como manda o manual. Não era para mim nada muito diferente das minhas revistinhas de colorir, onde na folha esquerda tinha o desenho idêntico ao da folha direita, mas diferia apenas que na esquerda o desenho e as cores já estavam lá e na direita eu deveria pintar da mesma cor da folha posterior. Para mim ponto cruz e revistinha de colorir estavam no mesmo patamar de desinteresse; eu preferia muito mais desenho à mão livre e meleca com guache. Observando a destreza de minha avó, a paciência e os óculos na ponta do nariz era realmente impressionante como ela conseguia fazer todos os pontos do mesmo tamanho, com a mesma pressão e precisão da agulha, ainda que fosse depois de 4 horas daquele trabalho manual e inclusive apesar da artrite. Todos os pontos eram perfeitos, confeccionados no mesmo ritmo, sincronizados com a respiração, com o punho que subia e descia como o calcanhar de uma bailarina Bolshoi. Aquele bordado da minha avó era a perfeição em nome de artesanato. Apesar da perfeição na parte visível (na parte de cima) do bordado o que mais me chocava era que o verso, a parte de trás, a que vai ficar escondida sobre o móvel ou sobre a moldura, era igualmente, infalivelmente e incondicionalmente perfeito. Nenhum ponto em falso ou frouxo, nenhum nó visível, nenhuma cor fora do lugar, nada indicava a diferença entre o que se mostra e o que se esconde.
De certa maneira aquele bordado me influenciou no que concerne à transparência de uma pessoa, no zelo e no perfeccionismo advindo do prazer e não por esnobismo, exibicionismo ou por não conseguir viver imperfeitamente. O perfeccionismo dela vinha do prazer que ela tinha em bordar, em ter aquelas horas da tarde sem o inferno dos outros, do tempo, da dor da velhice. O perfeccionismo para ela, assim especulo, era o caminho para a paz, ainda que momentânea.
Obviamente não foram apenas as tardes olhando o ponto-cruz que me tornaram uma pessoa perfeccionista, zelosa e transparente, mas hoje me pergunto se alguém, além de mim e da minha avó algum dia já notou o verso do seu bordado. Nos últimos dias, tenho duvidado que alguém perceba o verso das minhas atitudes e aprove meu perfeccionismo, meu zelo e minha transparência. O que eu achava serem atributos se tornam um fardo difícil de arcar. Afinal, nos dias de hoje, o que vale é o artifício: faça o que for preciso para agradar, para ser perfeito por fora, para ser agradável, educada, amena, sorridente; vire-se, estoure-se, imploda-se, agüente, mas sorria. Não conteste, não pergunte, não grite, não chore, não mude, aceite. De que servem o zelo e a transparência num jogo social, onde o melhor é o melhor fingidor?
Aceite.
Porque o mundo olha mesmo é a parte de cima do bordado.