02/11/2009

Tempo suspenso e vaso.

Digito esta postagem com as mãos coloridas. Ontem me ocorreu de fazer algo despretensioso, que me ajudasse a passar aquele fim-de-tarde que é tedioso demais para não fazer nada, mas vadio demais para fazer alguma coisa. Como vem me ocorrendo a algum tempo, um bloqueio com ar de auto-sabotagem para fazer, tocar, pensar, falar e ouvir música deu o ar da desgraça. Zanzei pelo quarto de trabalho tentando me convencer que era dele que eu precisava e fracassei; arrastei as mãos pelo teclado do piano mas não me emancipei da vergonha para tocar; mudei de sala; liguei a televisão e me irritei com a imbecialização promovida em todos os canais; desliguei; fui à sacada do quarto de dormir e olhei o céu; enjoei; comi uma pêra, um chocolate, amendoins, tomei café, água, chá, peguei os ingredientes para fazer o bolo, desisti, guardei os ingredientes, comi um pão, outro chocolate e uma banana: tudo nesta ordem e sempre em pé, andando pela cozinha e ouvindo o relógio novo que palpita na parede perto da mesa. Escurecia e o pavor de não ter feito nada começava a arrebentar. Voltei para o quarto de dormir pronta para me entregar ao travesseiro e amargar; no criado-mudo o Montanha Mágica tombado, que me entretinha nas últimas 100 páginas, agora parecia tediantemente tóxico; o abajur não estava pronto para semear a pouca luz que leva ao sono e algum vento ainda morno se enfiava pela fresta da janela, indicando que ainda não era frio nem tarde o bastante para dormir. Levantei frustrada por nem mesmo ser capaz de dormir. Voltei para o quarto de trabalho. Olhei ao redor: livros, piano, computador, papéis rabiscados, pentagramas, lápis, restos de borracha e a lixeira cheia me encheram de pânico e sentei no chão, virada de costas para a mesa. Quis chorar. Quis arquitetar uma mudança de vida, um corte radical de cabelo, fazer a mochila e virar mendiga, ligar para a mãe, para a melhor amiga, tomar um porre, praticar algum esporte, praticar alguma maldade, praticar alguma bondade, viajar para uma floresta inóspita, ligar para as mães dos meus alunos e soltar toda a má-educação que oprimo quando me sacaneiam, quis quebrar alguma coisa, quis consertar a pia entupida, quis esmagar cada um dos meus dedos num grampeador para justificar minha letargia, minha falta de brio, minha incompetência de lidar com meus fracassos profissionais e emocionais, minha inabilidade para levantar depois de cair. Sentei no chão e nem chorar não consegui: não sei lamentar por alguém tão covarde e vaidoso.
A revista cuja capa figurava o político americano transcendental que todos acreditam ser o neo-cristo socioeconômico estava caída no chão. Peguei, arranquei a capa e enrolei em forma de canudinho. Achei que aquilo era suficientemente bom como remédio para o tédio de não fazer nada e suficientemente gratificante para a preguiça de fazer alguma coisa. Enrolei várias páginas em forma de canudinhos finos e compridos; enrolei uns nos outros, colei. Virou uma roda. O que fazer com isso? Preciso de um vaso para a mesa da sala-de-jantar...Eu não sei fazer um vaso, nunca fiz. Vou tentar e ver no que vai dar. Não vai dar em nada isso aqui...

Deu num vaso. Meu primeiro vaso! Enquanto fazia não tive vergonha de fazer, não esperei que fosse um vaso bom, nem bonito, nem útil, nem exótico, nem "geniaaaal"; não queria dá-lo para ninguém, não quis mostrá-lo para ninguém, não quis que ninguém gostasse dele e especialmente: não quis destrui-lo quando acabei. Tive prazer e só. Fui absorvida por fazer alguma coisa que verdadeiramente não queria dizer nada, que não tinha pretensão, que ia existindo só porque eu queria e não porque eu achasse necessário. A questão era fazer porque eu queria e não porque eu precisava. Lembrei que alguns anos atrás eu sentia isso todos os dias, mesmo que por poucas horas: eu tocava piano porque eu gostava, eu compunha porque tinha vontade, eu lia porque achava legal e não para me distrair ou me informar, eu ouvia música porque sabia que era viagem garantida e não para "conhecer" - como quem arrogantemente pretende conhecer caviar para poder arrotá-lo e demonstrar a experiência. A música e tudo relacionado a ela me davam prazer. Por isso desejei fazer música para o resto da vida.
Quando foi que fazer isso deixou de ser prazeroso para se tornar num fardo recheado de vaidade, pretensão, responsabilidade, cobrança e medo? Quanto tempo levou, foi gradual, foi repentino, teve um motivo, tiveram vários motivos, eu escolhi?
Obviamente meu vaso de papel-revista não é miraculoso o suficiente para dar respostas {eu tenho birra intravenosa, sincera e convicta de quando acham que uma "coisinha" pode ser a chave de todos os mistérios [como um livro de auto-ajuda, uma ida à igreja ou ao templo, ou um puxa-estiga de ioga, uma droguinha, uma perversão sexual ou uma viagem etc. (é como aquela frase cheia de pseudo-benevolência que é pura sacanagem e inutilidade que o Mestre dos Magos sempre diz para algum dos personagens bonzinhos e desesperados da Caverna do Dragão)]. GRRR!!!!}.
Assim, sentir prazer e suspender a responsabilidade sem auto-flagelo também não vai transformar as idéias em música materializada no papel ou no som.
Mas lembrei como é deixar que as horas passem sem me preocupar se o que estou fazendo é bom ou útil. Ontem eu lembrei que o tempo do prazer é suspenso e que eu ainda sei fazer meu tempo parar. Seja fazendo um vaso para depois pintá-lo, seja escrevendo para leitores anônimos ou inexistentes.

Coda:
Não resolvi nada sobre a música, nem sobre a minha neurose de futuro ou minha covardia para levantar, embora eu usufrua de certa leveza, ainda que temporária, para não pensar nos problemas mesmo que não esteja alienada em relação a eles.
Mas estou satisfeita: minha mesa da sala de jantar agora tem um vaso.