09/07/2009

Leprosos virtuais

Com este princípio de pneumonia que me acomete, o que há de mais próximo de mim, fora o vírus que já se confunde com minha própria pessoa, são os lenços, o termômetro e o anti-térmico. Nem mãe, nem namorado, nem amigo, nem o sol da pracinha, nem a confusão das escovas de dente. Nada é passível de interagir comigo, além dos já mencionados colegas Softy´s, Terumo e Dipirona (tanta intimidade pede pelo nome). Por vezes tento fazer coisas normais, como pegar a panela com comida e servir outras pessoas, ou colocar os talheres de outras pessoas à mesa, dar um abraço ou pegar a mão... mas sinto o gelo terrível de um olhar que teme o contágio e induz a largar imeditamente a panela, o talher, o braço e o abraço. É uma doença, eu concordo.

Claro que estou melodramática, já que há 7 dias tudo o que faço é dormir, tossir e tomar remédios, ver o outro ser da minha casa usando máscara 24h por dia e ter a sensação que faz uma semana que só gasto energia do planeta sem oferecer nada de bom ou útil em troca, isso acrescido ao fato de eu não ter nenhum contato não-virtual com a humanidade. Mas isto me lembrou alguns fatos meio tristes, que vivi na infância e que agora se transformam num dilema que pretendo resolver coerentemente no prazo de 15 anos (que é o tempo que eu ainda posso ser mãe, ou não).

Uma vez, no supermercado, vinha descendo um homem que andava difícil, bem difícil, com uma muleta diferente, de ferro e ponta de borracha preta que só usava em um braço. Fiquei atônita olhando para ele, olhando bem olhado, cada movimento, cada repetição de movimento, o suor, o tipo de listra verde clara da blusa, o sapato gasto, o pescoço estressado, as veias salientes das mãos, o raspar da muleta no asfalto da descida... tudo bem olhado. Eu nunca tinha visto ninguém daquele jeito antes. De repente pliiiiiiiiiiiiiiif e aquele beliscão de braço ardiiiiiiiido, irritante, daqueles que inspiram a cólera mais violenta na criança e faz com que ela comece a entender na prática o significado da palavra ódio. O beliscão da minha mãe quis dizer "pare de olhar para o doente". Depois ela me explicou que era feio olhar pra gente que tinha problema porque a pessoa ficava com vergonha por ser diferente. Logo, o jeito era "minimizar" a diferença pela indiferença.
Acho que algo muito parecido acontece com os idosos: eles vão envelhecendo, perdendo o vigor físico, ficam cada vez mais tempo sentados, falam cada vez menos, se esquecem cada vez mais, as dores aumentam e a indiferença dos parentes também aumenta. Os parentes vão tratando o vô e a vó como se fossem uma mobília da casa, ou uma coisa que sempre esteve lá do mesmo jeito. Eu tremo de pavor ao imaginar que um dia minha filha e minha neta vão se esquecendo que eu, além de velha, sou e fui gente como elas. E eu tremo duas vezes mais forte de pavor ao imaginar que eu um dia esqueço disso na velhice da minha mãe. Vou ter de desaprender o que ela ensinou: fazer de conta que você não repara uma deficiência e se tornar indiferente às diferenças.
Ah, sim. Isso tudo porque me senti, durante a pneumoniazinha que me acamou por 8 dias, como um móvel velho, empoeirado, inútil e repulsivo.
Eu, altamente contagiante e periculosa, fui e voltei na sensação do abandono e repulsão que sente de um manco, um velhinho ou um leproso, e me magoei.


Mas tudo bem. Hoje já parei de tossir e de me relacionar com o termômetro. E sei que vou pintar meu cabelo de rosa-choque com verde-fosforescente assim que chegar aos 70. Quero ver quem é que não vai me ver na velhice... Se precisar, bem velhinha, eu danço funk pelada na sala também. Ao funk e à nudez ninguém é indiferente.