23/02/2010

Uma cadela.

Algumas vezes sinto a necessidade de me desprover de pensar.
Tento lugares vazios, silenciosos ou com algum tipo de mato por perto, um tipo de imbecialidade semi-iogue que me imponho quando o fato de ser pensante se torna --e me torna-- insuportável.
Tentando não pensar, só e afundada no banco da pracinha, me atravessa os olhos inchados e raivosos uma cadelinha.


Ela não é de raça. Quer aproveitar cada matinho molhado com urina alheia, quer cheirar todos eles, quer se esfregar com alegria na grama e sujar o focinho na lama. Quer desesperar as pombas e persegui-las por diversão e por força do instinto. Ela quer andar distraída, cheirar o rabo dos outros cachorros, batalhar a comida no lixo, provocar a pedrada dos meninos e a migalha dos idosos; quer correr, fugir, voltar, se achar. Ela é uma vira-lata.
Presa com um peitoral de couro ligado à uma corrente de ferro, é puxada com força pelo seu dono. Ele teima em transformá-la numa obediente e elegante cachorrinha de passeio, com andar regular e olhar fixo, que entende o automatismo do passeio que serve para queimar calorias, prevenir o enfarto, lidar com o estresse e fazer o cachorro defecar fora de casa. O cachorro de raça sabe que ele tem de ter classe, educação e obediência. Ele sabe onde é seu lar e a quem deve prestar contas. Ele não se dispersa, ele não regozija-se com cada objeto estranho da pracinha. O cachorro de raça sabe o que é preciso fazer para morrer de podre, de velho, de luxo.
A cadelinha vira-lata teima em ser curiosa, insaciável e insatisfeita.
Ela vai, fatalmente, morrer de vida.